segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Jornada de desafios por uma região sem água e recursos

Solidariedade de estudantes cariocas foi colocada à prova em viagem de superação pelo Projeto Senas Rondon ao Norte de Minas.
ITACAMBIRA E LASSANCE – Deixar o conforto de casa e abrir as portas para uma miséria desconhecida, que parece estar mais distante do que se imagina, foi o desafio dos universitários e professores da Universidade Castelo Branco, do Rio de Janeiro, que se candidataram ao Projeto Senar Rondon. Durante a jornada, eles descobriram que não é preciso atravessar continentes e aprender idiomas para perceber o quanto falta para tanta gente.

Ainda que a boa vontade tenha sido a premissa para o grupo, não foi fácil ficar até o fim dos planos. Nas cidades de Lassance e Itacambira, no Norte de Minas, eles testemunharam escolas rurais com salas de aula precárias – bem diferentes daquelas que estão acostumados a frequentar.
A água é contada gota a gota, enquanto as grandes cidades esbanjam desperdício. Ao fim da viagem, apenas uma palavra define, com clareza, o que esses “desbravadores” levaram na bagagem de volta para casa: superação.
Para a estudante de Serviço Social Simone Santos de Oliveira, 38 anos, moradora da Vila Vintém, em Padre Miguel, no Rio de Janeiro, a dificuldade que enfrentou para conseguir ingressar na faculdade serviu de impulso para vencer os obstáculos. “Depois de 14 anos sem estudar, me sinto uma vencedora. E como é bom poder estar aqui ajudando estas pessoas”, afirma.
Já para a aluna de pedagogia Dorcas Alexandre Barros, 64 anos, moradora de Marechal Hermes, também no Rio, participar do Senar Rondon serve de exemplo para os seis filhos e 13 netos. “Quero ser o espelho para minha família e inspiração para estas pessoas. Sei que elas podem vencer”, enfatiza.
Nos mais de 1.300 metros de altitude da Serra Resplandecente, em Itacambira, os estudantes reservaram um tempo para um dos raros momentos de lazer. “Nunca fui em um lugar tão bonito”, sussurrou o estudante de Veterinária Ruan Chaim, 22 anos. O contratempo é que as belezas naturais acabam escondidas por desigualdades tão gritantes.
Nas escolas das comunidades rurais Morada Nova e Gama, carteiras e cadeiras em ‘péssimo estado contrastam com hortas e pomares belíssimos, que ajudam a complementar o almoço e a merenda dos alunos. “Muitas professoras moram na escola porque é muito desgastante ir e vir todos os dias para a sede da cidade. Além disso, as turmas são misturadas: educação infantil, 1º e 2º anos dividem a mesma sala, o que também acontece com os alunos do 3º, 4º e 5º anos”, conta a pedagoga e supervisora de quatro escolas de Lassance, Érica Cristina Soares dos Anjos, 25 anos.

Das 28 comunidades rurais que compõem Itacambira, apenas uma tem água tratada.

Os investimentos em água potável deveriam ter começado em outubro de 2009. A licitação já foi definida, com a Construtora Sanenco ficando responsável pelas obras, que devem custar R$ 18 milhões.
Mas a Companhia de Serviços de Saneamento Integrado do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Copanor) não autorizou o início dos trabalhos porque ainda realiza levantamentos e projetos na região. “A cidade está parada porque é preciso resolver essa pendência. Não posso asfaltar as ruas, porque depois eles vão ter que quebrar tudo”, afirma o prefeito de Itacambira, Marcelo Leão.
A falta de água tratada foi uma das dificuldades enfrentadas pelos estudantes. “É uma realidade muito diferente da nossa, um grande desafio”, ressalta o professor de pedagogia Marcelo Abreu.

Invasão e roubo em alojamento

Desafio, no entanto, não é propriamente um termo que estes estudantes e professores têm medo. Mas foram outras situações, que vão além da falta de infraestrutura, que provocaram pânico e, ao mesmo tempo, revelaram indignação e busca por justiça. Era para ser apenas a noite da viola, mas o atropelamento de um cão ainda filhote mobilizou estudantes de Medicina Veterinária e os fez parar na Delegacia de Itacambira.
Segundo os estudantes Rejane Barros, 34 anos, e Lídia Toledo, 24, um motorista de 21 anos atropelou e matou, propositalmente, o animal. “Gritamos para ele parar o carro, que estava em baixíssima velocidade, mas ele não nos deu atenção”, lembra Lídia.
Para os alunos, ir até a delegacia prestar queixa foi uma maneira de mostrar para a própria comunidade que não se deve ficar calado, mesmo diante de situações que, para muitos, podem não ter importância. “Foi um cachorro, mas podia ser uma criança”, ressalta Rejane. O que ninguém contava, entretanto, foi com a notícia de que o motorista não tinha carteira de habilitação. Resultado: acabou sendo preso em flagrante e levado para a Delegacia de Montes Claros.No dia seguinte, mais um susto. O alojamento dos estudantes na Escola Santo Antônio foi invadido e vários equipamentos, como celular e R$ 630 em dinheiro foram roubados.
O boletim de ocorrência foi registrado, mas nada foi recuperado. Depois de seguidos transtornos, a partida precisou ser antecipada, afinal, com a insegurança rondando os participantes do Projeto Senar Rondon, não houve alternativa além de deixar a cidade de Itacambira antes da hora. Era preciso voltar pra casa.

Alerta para jovens entregues ao crack

ITACAMBIRA E LASSANCE – O uso do crack é um dos maiores desafios que Lassance, no Norte de Minas, tem pela frente. O prefeito da cidade, Idson Fernandes de Brito, estima que 70% dos jovens já tenham embarcado no vício. E isso vem contribuindo para o aumento da violência.

“As pessoas começam a ter medo de sair de casa e estão com as mãos atadas porque é um problema que já chegou e ainda não sabemos como contê-lo”, afirma.

Segundo a Secretaria de Defesa Social (Seds), não há projetos específicos para tentar resolver o problema na cidade, porque ainda não há números significativos de violência na região. “Quando as pessoas começarem a morrer por causa disso, quem sabe alguém olhe para a gente”, lamenta a dona de casa Tânia de Souza, 42 anos.

Já em Itacambira, uma das preocupações é o aumento de doenças cardíacas, como a hipertensão, e renais, que cresceram significativamente nos últimos anos. Mas para uma região tão carente, até mesmo quantificar essa alta é difícil. As constatações são feitas no dia a dia e na busca pelas unidades de saúde e farmácias.

E a avaliação é de que a automedicação e o não cumprimento da receita feita pelo médico são os principais motivos para que os moradores apresentem mais problemas de saúde. “Logo que a dor dá uma trégua, a maior parte das pessoas para com a medicação. Quando a dorzinha reaparece, ninguém volta ao médico. Eles acreditam que é o mesmo problema e se automedicam”, explica o enfermeiro José Leão, 29 anos, que atua na comunidade São José, a 20 quilômetros de Itacambira.

E a negligência com a vacinação do gado, fonte de renda e alimentação no município, também preocupa. Os proprietários de fazendas em Itacambira reclamam de ter que imunizar o gado contra doenças como a febre aftosa. “A maioria compra a vacina para apresentar as notas fiscais caso haja fiscalização do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Mas eles se recusam a aplicá-las. Dizem que isso estressa os animais e garantem que nunca houve registros de aftosa na região”, diz José Leão.

Deixar de vacinar o rebanho não é visto como problema pelo produtor rural Altair José de Almeida, 42 anos. Ele afirma que, como a região não registra casos da doença, seria desnecessário gastar dinheiro com a vacina e, ainda, correndo o risco de a vaca ficar estressada e render menos na hora da ordenha.

Independentemente da qualidade do rebanho, ele diz que a cooperativa paga o mesmo valor pelo litro de leite - cerca de R$ 0,64. “O problema é que o custo do litro é de R$ 0,55, e não podemos aumentar ainda mais esse valor. Não renderia nada”, diz.

Lassance figura entre os 25 piores em emprego e renda

Reverter a situação de miséria em Lassance e Itacambira é desafio que pode ser medido em números nada animadores. Lassance figura na 828ª posição no ranking de emprego e renda no Estado. Significa que, entre todos os municípios mineiros, está entre os 25 piores no que se refere aos postos de trabalho gerados em um ano e ao salário médio pago ao trabalhador.

Em uma escala que vai de 0 a 1, onde 1 é a melhor nota, alcançou somente 0,2066 neste quesito, enquanto
Itacambira ficou com o 712º lugar na lista, com 0,2345.

O levantamento, anual, foi feito pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e divulgado em agosto de 2009. Elaborado a partir de dados oficiais de 2006, fornecidos por ministérios, se assemelha ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - medidor de qualidade de vida criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) - e ajuda a situar Lassance e Itacambira frente aos demais 851 municípios do Estado. O Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) ainda apurou o desempenho das cidades em educação.

Na primeira área, Lassance está longe de cumprir o dever de casa. Apesar da marca de 0,6171, figura em 712º lugar no ranking deste indicador. O IFDM-Educação é aferido por meio da taxa de matrícula na educação infantil, do abandono das salas de aula, da distorção entre a idade do aluno e a série que frequenta e o percentual de professores com ensino superior.

O IFDM-Educação também considera o desempenho do município no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que no caso de Lassance foi de 3,3 - bem distante da média de 6,0 que o Ministério da Educação espera ver o Brasil alcançar até 2021. A cidade ainda sofre com uma taxa de analfabetismo de 23,1%, 120% maior do que a média nacional.

Já Itacambira - onde 28,5% dos moradores não sabem ler e escrever - marcou 3,9 no Ideb. No IFDM-Educação alcançou 0,6631, chegando a 559º lugar na lista dos municípios mineiros. Entre especialistas, a educação é considerada um dos indicadores de desenvolvimento mais importantes porque está ligada à conquista de melhores postos no mercado de trabalho e, portanto, ao aumento da renda da população.

A Secretaria de Estado da Educação alega que fez investimentos nos dois municípios. Entre os anos de 2003 e 2010, Itacambira teria recebido R$ 1,1 milhão. Em Lassance, os prédios da rede estadual foram reformados recentemente.

Já com relação à fome, o projeto de Combate à Pobreza Rural do Governo estadual beneficiou 776 famílias de Itacambira, com recursos de R$ 350 mil, desde 2006. Em Lassance, a verba foi de R$ 403 mil.

A Cemig informou que pretende fazer 80 das 130 ligações de energia elétrica necessárias em Lassance até setembro. Uma terceira etapa do programa vai atender mais 50 famílias. Já em Itacambira, das 86 propriedades cadastradas no programa Luz para Todos, 65 devem receber energia em casa até novembro.





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